terça-feira, 18 de outubro de 2011

Meu Lattes

A bem dizer, nasci ontem, 18/10/1952. A seca dos três oitos enxotou parte da família de avós de mãe a migrar pro Amazonas. Meu avô, foi seringueiro no Acre, por 30 anos. O sezão da mata, o medo de estrepada de índio e picada de cobra infeliz, meteram meu avô de volta pro Ceará, em balanço de barco de motor cansado, mais a mulher Mocinha vomitando grávida; minha mãe, Aldenora de colo nas tetas magras. Descarregou malas no porto de Camocim. Num matulão cheio de cobre azinhavrado, sobrou recursos pra passar documento de légua de pasto de boi, bode e carnaubeira, terra a perder de vista, nos confins do Piauhy. Trouxe rosário e, por via das dúvidas, garantiu, no surrão, terçado e papo-amarelo cruzeta, aviado em barracão à beira da foz do rio Envira. Na terra seca, levantou casa de três pisos. Parede de pedra de metro, teto de aroeira, pau-dárco talhado em serrotão, telha e tijolo de barro amolengado da Lagoa das Caraúbas. Fez açude com barragem de terra, barro puxado a lombo de jumento e couro de boi. Visto o trabalho, e o pau-de-fogo, ganhou patente de capitão respeitado na boca do povinho do lugarejo. Capitão Raimundo Inácio do Belmonte, vez em quando a gente escuta, anda enforcando pescoço de patife desaforado que mexe nos pés de Jucá no cemitério do morro onde descansa.

Se falei muito do meu avô de mãe, é que sua patente de milícia popular tá encruada em mim, por via da convivência. Nasci na casa grande do Capitão e o meu berro de vida se misturou aos berros de bezerros nascidos no curral do lado. Meu avô recebeu procissão do Alto Alegre num Dê licença Capitão, Parabéns, Sim Senhor, O menino é sadio. Enquanto o Capitão, deitado em rede de tucum, tirava a guarda, mascando fumo e cuspia certeiro no coco duma escarradeira de ágata. Mais tarde, enterrei umbigo na porteira das vacas amojadas e joguei dente de leite na cumeeira do telhado mal-assombrado. Pesquei traíra em açude. Piau em rio. Piranha em lagoa. Atirei em olho vermelhoso de jacaré e me perdi dia inteiro em caatinga desprovida de toda sorte dágua. Meu avô Capitão gastava autoridade guardando a mão do neto contra calo de mão de enxada. Meu pai Adauto - doutor de lei, nascido no Cascavel da rapadura, filho de Sebastião, senhor de bigode de severo respeito e de Dona Sinhá, rezadeira de novena - ajudou minha mãe Aldenora a me treinar o lápis, queimando pestana em luz bruxuleada de lamparina e vela – muito mais tarde, me ensinou a trocar válvula queimada de rádio.

Minha cabeça amarelosa, feito cabelo de espiga de milho, passeou em patronato no interior e me deu o desprazer de ser alcunhado Fogoió. Mais tarde no Ceará, trocado, ainda em pior desgosto meu, por Lourim. Levei corte de asa de Irmã por não ser merecedor na idade pra passar de ano. Minha mãe escumou raiva Que o bichinho não merecia isso ... e me empurrou pro Ceará sentado em poltrona da Expresso de Luxo gemendo tremelosa em rodagem de piçarra poeirenta. Nadei e joguei rede em cará e jacundá na lagoa de banho da índia Iracema. Meu tio Chico, dono de sonolento Prefect verde, contador de estórias e filósofo de pijama de riscado, tinha desacerto no fole e reumatismo. De posse dessas ruins qualidades, foi consertar pulmões nos debaixos dos mangueirais de Mecejana, nos arredores da terra onde nasceu e findou dos ares o finado ditador-presidente Castelo Branco, pra onde fui mandado escoteiro. Eu era o anjinho da minha bondosa tia Yayá. Sem ter o que fazer, caçava borboleta, espetava besouro, laçava tijubina, atirava pedra em rolinha e outras estripulias. Veio uma fábrica de veneno agrícola, matou minhas borboletas, besouros, tijubinas e rolinhas; parou de vez o fole do Titio. Chorei muito e fui encomendar as almas dos meus viventes em reza forte. Mudei pouco. Só bem depois, bicho do mato passou a ser meu aliado.

Alisei madeira de colégio público, onde o professor Jujú me obrigou - eu e mais cambada sem rumo - a declamar Camões, Castro Alves. Tinha o Fagner que decorou os versos de jangadeiro do Padre Antonio Tomás e arribou de lá nas velas do Mucuripe com voz de taboca rachada num Vida Vento Leva-me Daqui. Eu fui ler Guerra Junqueiro esperando gota de chuva se despencar em pé de macambira. Dou conta de desligado, porque adentrei ligeiro desprevenido apartamento errado na Bahia e já sai em mais de um fusca doutros donos. Mas sempre me desculpei num Sim, Senhor, Foi sem querer, Deixe disso, Não tem porquê.

Acertei contas na Engenharia Civil. Não serviu. Direito, não fiz direito. E de Administração até o computador da repartição onde trabalho não respeita minha patente: que careço de autoridade de administrador pras ingerências da máquina. Dia desses no Belmonte, desembuchei orgulhoso Que tinha manha nos programas; Que era mestre em computação e coisa e tal. Maria do Nêgo me esbregou: Que desrespeito, Que isso não era coisa dum neto garantido de capitão de milícia popular andasse espalhando por aí, Que arrumação de vícios desses ficasse guardado nos aposentos de luz vermelha. Por via de conseqüências de futuro incerto e desproveito de minha patente, aprendi um pouco de tudo, pra empurrar nos pés porta de juiz, desembargador em foro e responder no grito a cobrador enjoado. Vagueei pela Petrobrás, Departamento de Rodagem, Alfândega, professor da UNIFOR e Escola Técnica do Ceará e tou hoje na ex-SUMOC pastorando banco.

Parte de mãe, 5 tios: Epaminondas, Sebastião, Manuel, Gerardo, Walda. Parte de pai, são 7: Sebastião, Coelho, Yayá, Omar, Walter, Mário, Sylvia. Irmãos, 4: Sylvia, Inácio, Sônia e Sandra. Casei mais Vládia. Gerei descendência direta pra 3: Delano, Marcel, Suele; a quem transmiti um pouco do não certo. Gosto da escrita de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, J. Cãndido de Carvalho (De quem tou agora copiando o estilo por sugestão da dona do “Não me deixes” do Quixadá); de ouvir Luis Gonzaga, Humberto Teixeira, Zé Dantas, Jackson do Pandeiro... Têm ainda Patativa do Assaré, Cego Aderaldo, Leandro Gomes de Barros, Leonardo Mota...

Mais dia, menos dia, num-sei-lá-não-sei-pra-quando, sobra minha devidamente desenvelopada vai servir de adubo a um pé de aroeira nas terras do Capitão meu avô que ainda penso proteger contra bicho-homem desalmado derrubador de pau dárco e matador de vivente de toda espécie. Minha prestação de contas pra São Pedro: bebi leite mugido, fiz safadeza de criança, judiei de passarinho; rezei salve rainha e padre nosso em confissão; aprendi catecismo com freira piedosa, formosa nos descobertos do pescoço; aprendi conta de somar no lápis do decote de professora de aritmética; vi as penas tortas do Garrincha e enjoei o Entende? do Pelé. Perdi tempo pro que não gosto, mas por dinheiro necessitado. E vi que tudo ou nada se acaba desprovido na natureza.

George Alberto de Aguiar Coelho

Um comentário:

  1. Fantástico!
    Muito bonito.
    Merece ser guardado como um documento valioso.

    Beijos,
    Marcel.

    ResponderExcluir